Como criar um polo tecnológico no Brasil?
Lições de Campinas
Por Guilherme Nakamura
Campinas é sem dúvida um dos polos de tecnologia mais importantes do país. De acordo com o Data Center Dynamics, a cidade foi responsável por 15% da produção tecnológica brasileira em 2015. A cidade conta com 20 centros de pesquisa e desenvolvimento, 18 centros de educação superior e 4 parques tecnológicos. Por isso, 30 das 500 maiores empresas do mundo têm sua sede brasileira aqui. Para além das grandes indústrias, o ecossistema de inovação campineiro inclui startups, empresas incubadas em universidades e instituições voltadas à ciência da computação. A base de pesquisadores da cidade garante sustentabilidade de conhecimento a esses negócios, visto que Campinas também gera cerca de 15% da produção científica nacional. Nossa cidade se tornou uma das poucas no Brasil que estabeleceu uma vocação de entregar produtos e serviços de alto valor agregado. E nos leva a uma pergunta importante: como isso foi possível?
O livro de Guilherme Gorgulho Massa crítica – Unicamp e a origem do polo de tecnologia de Campinas argumenta que a fundação da Unicamp em 1964 é o marco inaugural do atual polo de tecnologia da cidade. Esta é uma tese bastante crível. Com menos de 60 anos, a universidade é considerada a segunda melhor universidade do país de acordo com diversos rankings internacionais, atrás apenas da USP. Entretanto, ela é a universidade referência em inovação tecnológica no Brasil. Conforme listamos abaixo, a Unicamp foi responsável direta pela implementação de diversas tecnologias importantes para o desenvolvimento sustentável do Brasil e para a integração nacional. Ela também possui uma política interna de incentivo ao empreendedorismo, ao patenteamento e ao licenciamento de novas tecnologias.
Esse papel da Unicamp no desenvolvimento de tecnologia brasileira foi o resultado de um esforço intencional, fruto da sorte, ou uma combinação das duas coisas? Guilherme Gorgulho não fornece uma resposta direta a essa pergunta, mas mostra como o desenvolvimento do polo tecnológico de Campinas não foi linear e como a história da Unicamp está emaranhada com a da ditadura militar. Conforme esperado para a discussão de um tema altamente complexo, o melhor que pode ser feito é identificar linhas mestras para começar a compreendê-la. Abaixo, elenco quatro dessas balizas.
1_ Foco no corpo docente
Assim dizia Zeferino Vaz, o primeiro reitor da Unicamp, sobre o que é necessário para uma universidade funcionar: “Uma universidade precisa primeiro de homens, segundo de homens, terceiro de homens e então de bibliotecas, depois de equipamentos, então de edifícios”. Esta frase está de acordo com a estratégia agressiva de Zeferino para conseguir os primeiros professores de sua instituição. Zeferino se esforçou em trazer pesquisadores renomados de outras universidade brasileiras oferecendo salários consideravelmente mais altos. Esta era a única estratégia possível para formar um corpo docente qualificado em uma universidade recém construída e, portanto, com nenhuma infraestrutura.
Vaz também fez um grande esforço em repatriar jovens promissores que fizeram doutorado no exterior, muitos deles tendo posições em universidades estrangeiras. Houve inclusive algum sucesso em trazer estrangeiros para trabalhar no Brasil. Isso era possível durante a década de 1960, quando as altas taxas de crescimento econômico tornavam nosso país atraente a aventureiros. No começo da década de 1970, metade do Departamento de Eletrônica Quântica do Instituto de Física era formado por estrangeiros, de tal forma que o inglês era o idioma oficial do grupo já naquela época.
2_ Pesquisa básica e aplicada em tecnologias chaves do século XXI (antes que elas ganhassem mercado)
A prioridade da Unicamp pode ser homens, mas, no que eles deveriam trabalhar? O Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) tinha dois focos de pesquisa no final da década de 1960. Ele pretendia se tornar referência na pesquisa em raios cósmicos sob a direção do físico experimental César Lattes. Lattes nomeia a plataforma unificada de currículos de pesquisadores brasileiros e é o cientista brasileiro que mais se aproximou de um Prêmio Nobel em alguma ciência. O segundo foco, mais relevante para aplicações tecnológicas, era a Física de Estado Sólido, hoje conhecida como Física da Matéria Condensada.
Por ocasião da fundação da Unicamp, poucos institutos no Brasil faziam pesquisa em Estado Sólido, com destaque para a USP de São Carlos. Esta situação teve de mudar drasticamente graças à invenção do transistor em 1958. O transistor é a peça fundamental da eletrônica contemporânea e aumentou exponencialmente a importância econômica dos materiais semicondutores. Um dos objetivos do IFGW era formar um grande número de pessoas capacitadas a trabalhar com esses materiais. Essa tarefa precisaria não apenas de maquinário específico, como também de pessoas capazes de entender cristalografia, mecânica quântica, teoria de bandas, etc
Um dos grandes sucessos das pesquisas em semicondutores não surgiu da microeletrônica, mas do Grupo de Laser. Grandes desenvolvimentos na tecnologia de lasers foram feitos no ano de 1970, no qual a empresa Corning Glass Works cria a primeira fibra óptica e a Bell Labs cria o primeiro laser semicondutor que operava em temperatura ambiente. Sérgio Porto era o pesquisador brasileiro na Bell Labs envolvido com o desenvolvimento de lasers e foi chamado para se tornar professor na Unicamp. Porto foi capaz de recriar lasers operacionais no Brasil que logo mostraram suas aplicações. Por exemplo, em 1975, a primeira cirurgia oftalmológica feita a laser no Brasil foi realizada em Campinas graças ao seu trabalho.
Paralelamente, a Faculdade de Engenharia de Campinas (FEC) também teve um foco inicial que se mostrou muito lucrativo. O mencionado desenvolvimento de fibras ópticas na década de 1970 permitiu a transmissão de maior volume de informação, o que revolucionou as telecomunicações nas próximas décadas. Ainda na área de transmissão e processamento de informações, a Unicamp criou o primeiro curso de Ciências da Computação do Brasil em 1969. Computadores são onipresentes hoje, mas temos que nos lembrar que elas ainda eram máquinas enormes e pouco eficientes nessa época. Para efeito de ilustração, o primeiro computador pessoal só seria lançado em 1971, e suas operações eram muito limitadas.
O ponto dessa seção é que a Unicamp apostou em fazer pesquisas em tecnologias ainda incipientes, mas que passaram a ser motores da economia nas décadas seguintes. O sucesso de tal escolha depende tanto de visão como de alguma sorte. Existem milhares de linhas acadêmicas prometendo tecnologias revolucionárias nesse exato momento, e a maioria não dá retorno imediato. Por exemplo, muitas novas tecnologias a base de grafeno foram prometidas a partir de sua síntese em 2006. Ainda hoje, poucos produtos baseados neste material estão no mercado.
3_ Tecnologias fomentadas pelo governo
A vocação de Campinas para resolver problemas tecnológicos brasileiros data de antes da criação da Unicamp, embora em menor escala. No começo do século XX, o Instituto Agronômico de Campinas foi responsável pela adaptação do café para o solo e clima de São Paulo. Essa descoberta alterou a economia brasileira no período, dando inclusive capital inicial para o desenvolvimento das primeiras indústrias nacionais.
A Unicamp deu impulso e escala à capacidade de Campinas resolver problemas técnicos com impacto nacional. Como exemplo, Guilherme Gorgulho destaca as contribuições para as telecomunicações advindas da colaboração entre o IFGW e o Departamento de Engenharia Elétrica. Em 1970, o Brasil contava com apenas dois telefones para cada 100.000 habitantes. Era impossível interligar um país de dimensões continentais com esses números.
Em 1973, a Telebrás faz parceiras com a Puc-Rio, a USP, o ITA e a Unicamp para viabilizar a nova tecnologia de transmissão digital de dados. O objetivo do grupo da Unicamp nesse projeto era viabilizar a Modulação por Código de Pulsos (MCP). Esse trabalho demonstrou uma diferença do pensamento acadêmico e da indústria. As primeiras versões do MCP eram “teoricamente corretas” mas inviáveis de serem operadas para a telecomunicação. Apesar disso, em 1976 uma versão do MCP já estava adequado para o uso industrial, e um projeto em paralelo era financiado na Unicamp para aumentar ainda mais a quantidade e velocidade de dados transmitidos. O domínio simultâneo da tecnologia de laser e da digitalização de sinais permitiu que Campinas se tornasse o centro de pesquisas em fibras ópticas no Brasil. O domínio da tecnologia do laser permitiu tanto a fabricação das primeiras fibras nacionais quanto a utilização dessas para transmitir informações. Por outro lado, fibras ópticas se tornaram imediatamente viáveis uma vez que se conhecia como converter, transmitir e interpretar informação digital. Essa convergência explica os centros de pesquisa de empresas como Telebrás e do Cpqd que foram instaladas aqui.
Outro exemplo muito importante de tecnologia campineira foi devido à Engenharia Mecânica: o desenvolvimento do motor baseado a etanol. Após a crise do petróleo de 1973, o Brasil precisava de um combustível alternativo para automóveis dada a sua dependência de petróleo importado. No mesmo ano, os engenheiros da Unicamp criaram o primeiro motor a álcool anidro. Esta invenção chamou atenção do governo federal, que criou o Programa Nacional do Álcool (1975) para viabilizar a comercialização de veículos movidos a esse combustível. Apesar da inconstância do investimento neste projeto, o primeiro veículo movido à álcool foi lançado ao público em 1979. Esta tecnologia se provou duradoura e à frente do seu tempo. Hoje, todos os carros produzidos no Brasil podem funcionar à base do biocombustível. Sendo renovável, a frota nacional de veículos é a mais ambientalmente sustentável do mundo.
4_ Interlocução política constante
A relação do polo tecnológico de Campinas com o governo militar nem sempre foi de apoio, especialmente no final dos anos 1970 e começo dos 1980. A cidade era considerada dissidente do governo militar, um centro difusor tanto de ideias comunistas quanto de democráticas. Na Unicamp, um caso de interferência direta do governo estadual levou o governador a impor como reitor o terceiro lugar da eleição universitária ao invés do físico Cerqueira Leite, na época muito ligado ao PMDB. Na mesma época, diretores do IFGW e da FEC foram exonerados por desconfiança do regime militar. A comunidade da Unicamp nem sempre reagiu da melhor maneira a essas afrontas. Em 1981, o pedagogo Paulo Freire retorna do exilio e é o mais votado para se tornar o reitor da universidade – algo que também foi vetado. Foi nessa época que os departamentos de ciências sociais da Unicamp começaram a formar o pensamento das esquerdas brasileiras da década de 1990, e que de certa forma perdura até hoje.
A despeito dessas turbulências com o governo, cientistas e engenheiros da Unicamp foram capazes de articular com o governo o maior projeto científico da história do país até aquele momento: o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron. Um síncrotron é um acelerador circular de elétrons capaz de fazê-los atingir velocidades muito próximas à da luz. Cargas aceleradas em um síncrotron emitem radiação com muito brilho e em ampla variedade de frequências (do infravermelho ao raios-x) que podem ser controladas experimentalmente. Essa radiação pode revelar propriedades estruturais, magnéticas e químicas de todos os tipos de materiais, tornando o síncrotron um dos mais versáteis instrumentos de caracterização de materiais (empatado, talvez, com reatores nucleares para espalhamento de nêutrons).
Por que fazer um síncrotron brasileiro? Essa foi a primeira pergunta feita não apenas por militares, como também por parte da comunidade científica brasileira. Quando a ideia começou a circular nos anos 1980, Ricardo Rodrigues, engenheiro que se tornaria herói dos aceleradores no Brasil, achava que o projeto era demasiadamente ambicioso. Cylon Gonçalves, professor do IFGW responsável pelo Comitê do CNPq que formalizou a criação deste laboratório, dizia “Você já se deu conta de que o Projeto Radiação Síncrotron cabe dentro de um Passat com o motorista”? Entretanto, a capilaridade dos cientistas de Campinas no PMDB dos anos 1980 criou momento para esse projeto para muito além do número de apoiadores da sua construção. Cerqueira Leite, aquele cuja reitoria foi negada, conseguiu inserir um paragrafo escrito por Cylon a favor da construção do acelerador no discurso de Tancredo Neves, presidente recém-eleito. Isso garantiu o começo do projeto nos anos 1980.
Para além da competência técnica, conversas politicas sempre foram essenciais para que Campinas hospedasse o LNLS, bem como para que houvesse um fluxo constante de recursos para continuar este empreendimento até 1997, mesmo a despeito de crise econômicas. O resultado é que o Brasil formou técnicos e engenheiros qualificados a produzir aceleradores de partículas, uma tecnologia dominada por poucos países. Por muito tempo, o LNLS foi o único acelerador do seu tipo no hemisfério sul. Ao redor de sua estrutura, foram criados outros laboratórios nacionais que compõe o CNPEM, o maior complexo científico do país. A experiência técnica combinada com a continuidade das relações políticas permitiram que Campinas fosse sede do novo síncrotron que substituiu o LNLS. Sirius, um dos dois únicos síncrotrons de quarta geração em operação no mundo, hoje opera na cidade e já é capaz de realizar ciência experimental de altíssima qualidade.
Consideração final
Concluímos que um polo tecnológico exige um grande contingente de engenheiros e cientistas altamente qualificados, trabalhando em tecnologias disruptivas desde o seu início, e com apoio direto do Estado para a produção de tecnologias de interesse nacional. Quando o projeto é gigante (como foi o LNLS), faz-se necessária uma interlocução política direta a fim de garantir recursos. Adaptar o sucesso de Campinas para outras cidades é possível, mas exige tempo e uma compreensão de que o governo deverá criar políticas de apoio que podem perdurar décadas até que a comunidade técnico-científica atinja a “massa crítica” para se autossustentar. A tecnologia financiada pelo governo deve então ser absolutamente estratégica para se tornar política de Estado. Muito ganharemos caso o sucesso de Campinas pudesse ser reproduzido em outras cidades, e esperamos que os cientistas daqui sejam parcialmente responsáveis por isso.